Conheça o diretor que produzia mais de 2 longas por ano (em média).

E 5 explicações para a sua produtividade.

“Qualquer um, quando fala do sentido da vida, acaba usando as palavras erradas. Palavras imprecisas. O problema é que não existem as palavras certas, só temos essas. Então comece a falar! Se tem uma coisa que, com certeza, existe, é movimento.” – Rainer Werner Fassbinder.

Em menos de 15 anos de carreira, Rainer Werner Fassbinder completou mais de 40 longas-metragens. 

Claro, um nome como o de John Ford assinou mais de cem filmes na carreira. E essa frequência alta de longas não era incomum para diretores dos sistemas de produção antigos. É importante ressaltar, contudo, que Fassbinder dirigiu num período e em condições de trabalho que não envolviam uma estrutura de grande estúdio e equipes grandes, numa época em que o tempo de produção de filmes já havia se estendido e, ademais, diferente de um profissional como Ford, ele também escrevia os roteiros e, por vezes, atuava em seus filmes.

Se engana quem olha para uma carreira de menos de 20 anos onde se encaixam esses mais de 40 longas-metragens produzidos, distribuídos, adorados e aclamados (e mais um bocado de peças e produções para a TV) e pensa que o volume dessa produção veio à custo da qualidade do trabalho.

Pelo contrário, a produtividade de Fassbinder é mais um aspecto folclórico de sua carreira do que a essência de seu legado, que, hoje, repousa muito mais sobre a qualidade dos filmes e sua relevância temática. Qualidade essa que é muito associada à força emocional de seu cinema, um cinema visceral e trágico, mas recheado de momentos de beleza irrompendo da miséria emocional de seus personagens. 

Seus temas, sempre muito pessoais, não eram limitados por tabus. Pelo contrário. Sempre muito pronunciada em seus scenarios, a sociedade alemã era sua grande fonte de inspiração. Mas era em seus tipos menos heróicos e mais machucados que Fassbinder encontrava protagonistas: homossexuais, travestis, judeus, burocratas deprimidos e reprimidos, prostitutas, viciados e imigrantes. Esses heróis que, na maioria das vezes, não conseguem se salvar de si mesmos, contracenam com capitalistas pervertidos,  autocratas, cônjuges negligentes, canalhas de toda ordem e, de maneira geral, com uma sociedade indiferente ao seu sofrimento.

Fassbinder é o que se chama de um diretor cultuado. Ele fez escola, inspirou cineastas no mundo todo. Um ícone do cinema queer, do cinema alemão, do cinema melodramático e do cinema em geral.

Mas nada disso explica como esse homem conseguiu produzir tantos longas-metragens autorais ou, ainda, por que conhecer a explicação é interessante para profissionais de cinema no Brasil e em qualquer lugar do mundo em 2023.

Na semana passada, falamos sobre o contexto do cinema alemão que envolvia Fassbinder, como funcionava o financiamento de filmes na Alemanha dos anos 70 e quais eram as ideias da cultura cinematográfica alemã (leia aqui).

Resta a questão: quais eram as características pessoais de Fassbinder que o levaram a produzir tantos filmes?

Como era sua personalidade?

Além de esboços vagos sobre a proficiência produtiva do povo alemão, é necessário avaliar como Fassbinder, que nem na faculdade de cinema entrou, dominou a produção cinematográfica a ponto de lançar 40 filmes independentes em 14 anos.

A resposta está na realidade de sua pessoa, uma coadunação peculiar de traumas, obsessões e inteligência. Ao mesmo tempo, existe um ponto em que o contexto de produção descrito acima encosta na vida individual desse artista, produzindo o resultado inesperado que produziu.

1- Filho do teatro, cineasta de coração.

Primeiramente, é necessário reconhecer que Fassbinder extraiu dinheiro e infraestrutura e força de trabalho de toda fonte que ele possivelmente poderia ter extraído. Do contrário não teria produzido tanto. 

Mais do que diretor-roteirista, ele também se enxergava como empresário de sua própria utopia estética, em que ele sabia como a forma com que produzia seus filmes era tão importante quanto o produto final. 

Em outras palavras, a produção também é estética. O lado gerencial e financeiro do cinema não está dissociado de suas áreas mais obviamente criativas como a escrita, a direção e a montagem. 

Nesse aspecto, vale voltar às origens de Fassbinder como artista. Ele veio do teatro. Não foi na faculdade de cinema que aprendeu a produzir filmes, foi nos palcos. As consequências disso são sentidas tanto no seu estilo enquanto diretor quanto na sua abordagem como produtor. 

No cinema de Fassbinder a encenação era mais importante do que qualquer outra coisa. Dispunha seus cenários e personagens de tal maneira que o filme como que se desenrolasse a partir da condição natural (contudo muito expressionista) das coisas. De uma realidade selvagem surgiam dramas pessoais. 

Enquanto produto, os filmes eram feitos com equipes alternadas relativamente fixas. Muitos dos mesmos profissionais trabalhavam em seus filmes. Ele tinha a sua “trupe”, como se faz no teatro, mas pensava o filme enquanto filme.

Fica evidente que, comparando Fassbinder com seu conterrâneo e contemporâneo Werner Herzog, ele não pensava os seus filmes fora de sua perspectiva teatral. Herzog jamais teria conseguido produzir 40 filmes em 14 nem que tivesse todo o dinheiro do mundo, pois pensava seu cinema como os pioneiros do cinema mudo, D.W. Griffith e Giovanni Pastrone, como épico imagético. Fassbinder, igualmente, jamais teria feito tanto cinema caso seu cinema fosse assim.

Outra concordância com o contexto que existia era a semelhança que a produção audiovisual para a TV carregava com o teatro. Os sets montados em estúdio, a encenação mais simples, os planos mais abertos, a câmera montada em tripé, a dramaturgia baseada no diálogo. Tudo isso aproximava a forma de produzir séries e filmes das emissoras de TV com o teatro, o que, por consequência, favorecia o modo de criar de Fassbinder.

É interessante notar que existia um toque de classicismo entre Fassbinder e o seu contexto. O classicismo, na teoria de arte, é associado ao equilíbrio entre forma, conteúdo e meio. Claro que o conteúdo de Fassbinder era subversivo, mas sua forma casava com seu meio e os meios de produção desse meio no período. Comentaristas alemães, como Wolfram Schüte, colocam Fassbinder como um tradicionalista visionário, alguém que usou as estruturas tradicionais para criar trabalhos vanguardistas, entre o industrial e o pessoal.

Com efeito, era isso que o distinguia na produção. Tinha relações pessoais próximas com sua trupe de atores e profissionais. Fassbinder possuía um ideal utópico de produção, de sociedade e de arte. Vivia e trabalhava perseguindo essa visão. Fundiu a produção artística pessoal com o sistema que o envolvia. Em outras palavras, ele pensava seu ambiente, sabia o que estava fazendo.


Então, se você quer produzir mais,

invista nas relações pessoais e de trabalho. Utilizar os mesmos profissionais também pode acelerar muitos processos, porque a comunicação é a melhor forma de chegar onde todos querem ir. 

2- Drogas e Abusos – A Sombra de Fassbinder

Não tem porque esconder a realidade, caso você queira aprender com ela. Fassbinder foi um usuário de drogas estimulantes que o ajudavam, por certo tempo, a produzir mais. 

Eventualmente, as substâncias estariam ligadas à sua morte prematura, fatalidade ocorrida no apartamento de Julian Lorenz, seu companheiro e editor de vários de seus filmes. É claro que esse ritmo super-humano de produtividade também foi atingido através da química sintética no cérebro.

Suas relações de amizade e amor com seus colegas e atores também não eram “só flores”, como se diz. Os laços fortes que Fassbinder construiu, frequentemente, os exercia como laços de controle. Relatos de seus atores e atrizes revelam que ele comandava sua operação sem muita preocupação com o bem estar de todos. 

Uma pessoa cheia de sentimento, era também alguém criado num ambiente difícil. Seu amigo de longa data, Daniel Schmid, disse, sobre a infância de Rainer: “Sua mãe o criou cruelmente, chamando o menino de feio, monstruoso, idiota, um boneco indesejado pelo próprio pai, que o abandonou antes mesmo dele nascer… acho que ele sentia que era incapaz de amar ou ser amado”. Essas relações de trabalho, e o trabalho era a sua vida, sofriam dos mesmos males que ele próprio sofria em sua vida particular, tantas vezes as duas se misturavam. 

E também não há motivo para ocultar a personalidade real do diretor. Dois de seus namorados (que também atuaram em seus filmes) cometeram suicídio, uma terceira tentaria fazê-lo 3 vezes. O tratamento abusivo não se limitava aos seus companheiros e companheiras, mas também à equipe. 

O ambiente de trabalho de um set de Fassbinder é descrito por Hanna Schygulla, uma de suas musas, estrelou em diversos de seus filmes, como um “laboratório projetado para descobrir como as pessoas são sob pressão”. Metódico, Fassbinder não usou apenas das suas ideias brilhantes para extrair o desempenho que queria de seus colegas, ferindo diversas pessoas ao longo da carreira. 

A saída saudável para produzir bem sem machucar ninguém é focar no trabalho e manifestar o melhor de si para sua equipe e seus atores. As pessoas também respondem de forma produtiva à admiração e carinho.  

3- Workaholic

Ninguém trabalha tanto sem ser obsessivo. E essa obsessão cobra seu preço no lado humano, como vemos intensamente no caso de Fassbinder.

As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant (1972).

Ao que se consta, o pequeno Rainer não teve muita infância para brincar despreocupadamente. Devido à condição financeira delicada de sua família, teve que começar a trabalhar muito cedo. 

Condicionado ao trabalho, Fassbinder trabalhou tanto quanto poderia. Diz-se que dormia muito pouco, usando das drogas e da obsessão para manter-se acordado. O amigo, Daniel Schmid, conta que nos seus últimos meses de vida, período em que finalmente alcançou algum sucesso comercial, tornou-se obcecado com a ideia de ficar rico, dizendo pelo telefone que “gostaria de fazer milhões, que nem Steven Spielberg”.

O telefone foi a única forma de contato com o mundo externo antes do diretor morrer. Havia se tornado recluso ao extremo, vivendo num quarto cheio de cocaína, filmes em em fita VHS, livros e dinheiro vivo. 

4- Pouca preparação/ensaio

Quando perguntada sobre o período de preparação dos filmes de Fassbinder, Hanna Schygulla disse: “Você chegava no set, pegava as páginas que faria no dia e fazia”. Então, como discutimos a respeito da incorporação da infraestrutura estabelecida e da equipe de profissionais regular com que ele trabalhava, esses padrões colaboraram com a produtividade.

Em um Ano de 13 Luas (1978).

A maioria dos diretores e diretoras de cinema preferem ter um bom tempo de preparação e pré-produção dedicados a ensaios com os atores e testes de câmera e, inclusive, sentem-se desgastados por terem de trabalhar em filmes que tiveram pouco tempo de preparação e acham que isso prejudica o resultado final. Isso é uma realidade em todos os mercados cinematográficos, nunca é garantido que o diretor terá tanto tempo quanto gostaria para trabalhar na preparação de seu elenco. Ao invés de lutar contra esse problema frequentemente em filmes com orçamento apertado, Fassbinder abraçou a limitação, ou não se importava com ela.

A realidade é que seu controle sobre a encenação e seus atores o faziam sentir perto o suficiente de onde queria chegar com os filmes. Claro que é apenas especulação imaginar como seriam seus filmes com mais tempo de preparação, ou repetindo diversas vezes o mesmo take. Se seriam melhores de alguma forma ou não. 

Quem conhece o trabalho do diretor sabe que as atuações se aproximam, em alguns casos, de uma teatralidade caricatural. Mas diversos filmes do diretor também são dotados de performances com sutilezas difíceis de replicar, como a cena da compra de discos de Porque Corre o Sr. R. Amok? (1971). Ele simplesmente conhecia bem o comportamento humano e o que queria ver na tela, o que facilitava seu trabalho como diretor. 

Berlin Alexanderplatz (1980).

É difícil, contudo, questionar o produto final, considerando que era, basicamente, o que ele queria. Seu caráter autocrático na direção garantia que era assim que ele queria que as coisas saíssem no set. Sua proximidade com o teatro, também dá pra argumentar, o colocou em relação de colaboração com atores muito bons, o que, muitas vezes, reduz o trabalho do diretor.

Então, seja por opção, por talento ou por negligência, ou uma combinação das três coisas, Fassbinder conseguia ir para o set sem ensaios.

Então, se você quer produzir mais,

invista nas relações pessoais com artistas e atores talentosos, tenha uma ideia clara daquilo que você quer, mesmo se existirem muitas limitações.

5- Encenação

Chegando no último ponto que vamos analisar, a direção de cena de Fassbinder propriamente dita, vale reparar como cada um dos tópicos anteriores, de suas bençãos e maldições, conversam uma com a outra, de forma que a personalidade do artista reflete em suas obras e no seu modo de produção.

O que percebemos disso tudo no estilo de direção de Fassbinder, cujas características, entre outras, exibem uma preocupação acentuada com a direção de arte estilizada, com a capacidade de deixar momentos difíceis se estenderem na tela e com uma decupagem bem tradicional de cena, com plano de estabelecimento, montagem analítica e closes para enfatizar pontos dramáticos entrecortada por takes estilizados e quase impressionistas.

Esse equilíbrio entre o tradicional e o novo cinema, entre o natural e o teatral, entre o literal e o literário tem tudo a ver com a maneira como ele fazia filmes. Equilíbrio talvez não seja a palavra certa, considerando a personalidade do diretor. Existe um embate, uma tensão entre esses elementos cinematográficos nos seus filmes, assim como todas as relações entre os personagens também são desenhadas em linhas de intenso contraste emocional e social.

O que se percebe na encenação de Fassbinder é que ele está muito mais preocupado com o que está acontecendo na frente da câmera, no seu “palco”, do que com aquilo que ele poderia fazer com a câmera. De forma bem classicista, as ferramentas particulares do audiovisual (a câmera e a montagem) são apenas meio para contar a história, onde ele busca a realidade, mesmo que por vias pouco naturais de representação.

Conclusão

Todo mundo quer produzir mais. Enquanto alguns prezam pelo tempo de ensaio e preparação, pela escassez, todo diretor ou diretora, todo produtor de cinema, gostaria de fazer mais filmes, caso fosse fisicamente possível.

Mas a realidade é que fazer cinema é um processo pesado, o que, apesar dos feitos impressionantes de Rainer Werner Fassbinder, fica evidente nos motivos que estão por trás desses feitos.

A obsessão, a falta de cuidado com a saúde física e mental dele e daqueles a sua volta não é louvável nem deve servir de inspiração. Hoje em dia, especialmente, seria muito difícil ele conseguir trabalhar tanto com o tratamento que dava para às pessoas.

E isso nos traz à lição de ouro que aprendemos com a história de Fassbinder. No fundo, o que o possibilitou produzir mais do que os seus colegas, com uma média impressionante na história do cinema, foi o CONHECIMENTO

Fassbinder não produziu mais filmes por causa das drogas, dos abusos, da obsessão, da história de vida ou da indústria alemã. Dê essas características a um artista menos consciente de seu trabalho e você não terá o mesmo resultado, especialmente se formos comparar a qualidade dos filmes.

Fassbinder produzia mais porque sabia exatamente onde estava, porque fazia o que fazia e como fazê-lo, na frente e atrás das câmeras.

Seus processos de produção, com pouco ensaio, orçamento curto, etc. eram assertivos porque o diretor conhecia a ele mesmo, conhecia sua equipe e conhecia o contexto em que trabalhava.

Se você quer produzir mais, faça isso: conheça mais. Conheça a você mesmo, estude como funciona o mercado, conheça a arte do cinema, estude o ser humano.

E, claro, assista Fassbinder.

Fontes:

https://www.newyorker.com/magazine/2003/02/10/fast-times

https://en.wikipedia.org/wiki/Rainer_Werner_Fassbinder#:~:text=Early%20films%20and%20acclaim,-Fassbinder%20used%20his&text=Fassbinder%20developed%20his%20rapid%20working,year%20on%20extremely%20low%20budgets.

https://www.dw.com/en/the-legacy-of-german-filmmaker-rainer-werner-fassbinder/a-19407243

6 Filmmaking Tips from Rainer Werner Fassbinder

https://firstlawcomic.com/how-many-films-did-fassbinder-direct/https://www.dw.com/en/what-defined-filmmaker-rainer-werner-fassbinder/a-53589684

https://www.rogerebert.com/interviews/daniel-schmid-the-fleeting-days-and-eternal-nights-of-rw-fassbinder

https://www.nytimes.com/1977/12/11/archives/german-films-are-subsidized.html

https://www.theguardian.com/film/2017/mar/27/rainer-werner-fassbinder-bfi-season-hanna-schygulla-interview

Folder da Exibição Retrospectiva Rainer Werner Fassbinder, concebido por Juliane Lorenz para exibição no Goethe Institute em Berlim.

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Conheça o diretor que produzia mais de 2 longas por ano (em média).

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