Caravaggio: O primeiro diretor de fotografia da história?

Como o pintor italiano usou técnicas fotográficas séculos antes da invenção da câmera e o que isso nos ensina sobre o uso de luz no cinema.

quem foi Caravaggio?

Pintor italiano pós-renascentista que ganhou notoriedade e admiração de colecionadores e pintores assim que ganhou espaço na cena artística de Roma no século XVI.

Seu trabalho se destacou por ser muito ambicioso e provocador. Dedicou-se ao hiper-realismo como não se conhecia até então e composições inventivas e dramáticas.

o realismo de Caravaggio.

Em muitas das escolhas técnicas e estéticas do realismo de Caravaggio já podemos identificar ideias que seriam “redescobertas” pelo realismo cinematográfico séculos mais tarde.

O realismo mais evidente de suas obras é óbvio: a representação fiel e detalhista dos comportamentos físicos do mundo real, desde a luz até a as expressões faciais e gestos. Caravaggio foi o mais destacado em tornar a pintura fotograficamente realista.

Mas sua proposta de realismo ia além disso. Ele não se utilizava apenas de modelos profissionais para suas obras. Frequentemente, usou pessoas comuns como modelos. E isso só é relevante quando você lembra que, na época, as pinturas eram largamente encomendas da Igreja. Arte e religião eram indissociáveis. As pinturas do período, especialmente num país católico como a Itália, eram quase sempre representações de cenas bíblicas. E é por isso que o realismo de Caravaggio era uma proposta estética ousada: para pintar A Morte da Virgem, em 1606, usou o cadáver de uma prostituta como modelo para Maria.

Interessado nos corpos reais, nas faces reais, aproximava as histórias bíblicas da realidade do povo.

A Morte da Virgem.

a questão.

O pintor David Hockney foi o primeiro a propor essa teoria: pintores pós-renascentistas, Caravaggio em particular, já teriam utilizado de técnicas fotográficas muito antes da câmera ser um sonho possível.

Hockney, em seu livro e filme-ensaio Secret Knowledge (2001), argumenta, comparando suas observações sobre a pintura chinesa do período com a europeia, que é possível se observar um esforço progressivo de tornar as imagens da pintura “fotográficas”, no ocidente. O gatilho para seu insight foi a observação de que os chineses não se utilizavam de sombra em suas pinturas como os europeus. Os chineses ou ignoravam as sombras ou escolhiam não pintá-las..

O que o pintor levantou, foi a questão: teria sido possível que essas imagens cheias de qualidades fotográficas, ou seja, achatadas, que capturam a interação entre luz e sombra de forma acurada e as figuras realistas dos corpos tivessem sido criadas simplesmente com a observação a olho nu?

a hipótese.

Hockney, então, propõe que Caravaggio, em especial, teria se utilizado de uma ou uma variedade de técnicas e utensílios fotográficos para pintar. 

Existem algumas proposições diferentes do que seriam essas ferramentas:

1- Câmera escura.

Você já deve conhecer o conceito: a forma mais rudimentar de uma “câmera”, com um funcionamento semelhante e a utilidade de um projetor de imagens. 

Gemma Frisius - the first published illustration of a Camera Obscura, observing a solar eclipse on 24 January 1544 KU Leuven, Belgium
Primeira ilustração conhecida de uma câmera escura, Bélgica, 1544.

Basicamente, Caravaggio teria montado seu estúdio de forma que funcionasse como uma grande câmera escura: em uma sala uma fonte de luz pontual (o sol, evidentemente, entrando por uma pequena abertura) incidia diretamente sobre seus modelos, arranjados da forma que desejava.

A sala ao lado deveria ser escura, então uma parede ou algum tecido grosso impedia a passagem de luz e separava uma sala da outra. Nessa barreira, contudo, para que o artifício funcionasse, teria que colocar uma lente.

Na sala escura, o pintor, então, posicionaria sua tela na medida em que a cena iluminada na sala ao lado aparecesse na tela, só que de cabeça para baixo. Também é possível que tenha usado um espelho para projetar a luz que passava pela lente, justamente para inverter a imagem projetada na tela.

Essa é a hipótese mais comumente aceita e conjecturada sobre a técnica de Caravaggio, mas existem algumas outras possibilidades de experimentos proto-fotográficos do pintor.

2- Espelhos.

Pode ser que Caravaggio tenha usado não exatamente uma projeção, mas, como um diretor de fotografia, tenha utilizado da manipulação da luz natural para criar um resultado de iluminação mais artificial, algo muito mais próximo do que vemos no cinema e na fotografia de estúdio nos últimos 100 anos.

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Uma possibilidade é que o pintor usasse um espelho ou uma lente para manipular o ponto focal da luz do sol, e assim criasse algo análogo à uma fonte artificial de luz, que incidia de maneira muito mais, obviamente, pontual e, portanto, dramática sobre a cena, construindo as sombras expressivas bem definidas que tornaram o estilo do pintor inconfundível quando comparado às cenas iluminadas por fontes de luz difusas (como é a luz natural) na época.

3- Reflexos.

Outra possibilidade especulada é que Caravaggio iluminasse suas cenas da maneira descrita acima, criando uma fonte de luz pontual, e, ao invés de representar os modelos a partir do que seus olhos viam, pintava a cena tal qual estivesse refletida em um grande espelho colocado em seu estúdio. 

Pode parecer que isso não faz muita diferença, mas vale lembrar que a imagem achatada refletida no espelho possui um efeito sutilmente, mas impossível de ignorar, diferente de ver algo com os próprios olhos. Portanto, Caravaggio teria enquadrado com uma ferramenta sensível à luz distorcida através de outro dispositivo artificial. Em termos muito rudimentares, aí está descrita a função de um diretor de fotografia.

Nessa escolha de pintar o reflexo e não a cena já estaria presente a importância do pintor na instrução de uma construção de imagem mais fotográfica e, por virtude da dramaticidade das cenas, ao mesmo tempo, também mais cinematográfica, do que a ilustração observacional “tradicional”. Meramente pela imagem ser a representação de um reflexo ou de uma projeção, algo se altera na percepção, e a referência para imagens se torna outras imagens, na medida em que a ideia de capturar uma imagem para gerar outra começa a nascer no pensamento criativo ocidental. 

Caravaggio, nesse sentido, teria sido um presságio das imagens do cinema. 

as evidências.

Entre as evidências dessa teoria sobre os métodos de Caravaggio, visto que não existem registros técnicos deixados pelo artista que comprovem com exatidão o processo, a mais forte é que não existem esboços feitos com grafite por baixo da tinta em suas telas. Hoje, a tecnologia permite ver que existem apenas linhas guias que delimitam a posição das figuras na cena e também guias para a pintura das sombras das cenas pintadas.

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Isso, aliado ao fato que dificilmente seria possível pintar com tamanho realismo a partir da pura observação a olho nu, indicam que o mais provável é que Caravaggio teria usado de algum ou alguns métodos alternativos na feitura de suas obras.

Outro ponto curioso das obras que parece apoiar essa hipótese é, na realidade, um defeito da pintura de Caravaggio. 

Especialistas começaram a notar que algumas proporções corporais das figuras estavam incorretas.

Nesse recorte de Martírio de São Mateus, por exemplo, notaram que o pé do santo é desproporcionalmente maior do que deveria ser, considerando o tamanho da cabeça da figura na tela. 

Algo semelhante se vê em A Ceia em Emaús, onde a mão mais afastada da figura ao lado de Cristo é maior do que a mão mais próxima da perspectiva. 

O motivo para essa anomalia, particularmente curiosa para um artista tão preocupado com o realismo e com os detalhes de suas obras, seria justamente o uso da câmera escura. 

Caso Caravaggio tenha usado uma câmera escura, ele teria que mover a tela onde pintava ao longo do processo, pois a lente não conseguia projetar a imagem toda e em foco de uma vez. Dessa forma, em qualquer posição, detalhes diferentes da cena estariam projetados em foco na tela de pintura, o que acarretaria nesses detalhes muito bem trabalhados mas fora de proporção com a imagem inteira.

relacionando Caravaggio e cinema.

A obra de Caravaggio, mais do que pelo realismo, é uma demonstração perfeita do poder do drama. Seu realismo, na verdade, é calcado no drama das cenas que pintava. Ou seja, de nada serviria o realismo fotográfico de suas pinturas ou o realismo de seus modelos se não houvesse drama nas composições. 

Isso é algo importante de notar porque, quando tentamos aproximar as obras do pintor italiano com algum dos tipos de imagens cinematográficas, o que parece vir à mente é o expressionismo da época do cinema mudo, o cinema noir (mas também a Hollywood clássica de forma mais ampla) e os filmes de Pedro Costa, que usam ostensivamente da escuridão e das fontes de luz pontuais.

Todos esses trabalhos têm em comum com Caravaggio o uso da sombra. Caravaggio inaugura na arte a iluminação artificial, e isso é importantíssimo para o cinema. O pintor prova que a imagem fotográfica e cinematográfica não são dependentes da câmera como ferramenta de captura. 

A imagem fotográfica é um produto, antes, do olhar do pintor/diretor de fotografia. Ademais, ela nasce da superfície plana, do achatamento da realidade, e da luz, pois são as sombras que dão a profundidade para a tela/cena. 

Desse pulo na percepção, que vai da observação para a captura planificada da realidade que surge uma imagem diferente. Essa interpretação muda a ideia de que foi a engenharia que “inventou” o cinema e a fotografia. Sim, a tecnologia viabilizou-os, mas os artistas já caminhavam, como nota Hockney, rumo à imagem fotográfica por meio de experimentos fundados na percepção subjetiva das imagens e não na tecnologia em si.

O espírito da fotografia e da cinematografia já permeavam o imaginário artístico.

Ficheiro:The Martyrdom of Saint Matthew-Caravaggio (c. 1599-1600).jpg –  Wikipédia, a enciclopédia livre

Caravaggio, ainda, nos atenta para a realidade particular das imagens dependentes da luz e, além disso, da luz artificial. Observar as pinturas do italiano serve de estudo base para a conceptualização de cenas dramáticas. Em essência, o cinema é movimento, ou ilusão de movimento. As cenas de Caravaggio são cheias de movimento, mas esse movimento só pode ser notado por causa do uso da luz pontual. 

Nesse sentido, os personagens do pintor tem sua realidade, seus medos, vinganças e martírios revelados a partir do momento em que um ponto de luz é lançado sobre eles. Eles se movimentam da escuridão para a luz sob o olhar obcecado do artista.

Caravaggio, ao dirigir a luz de suas cenas e as superfícies sobre as quais “capturava” essas imagens, dirigia o tom, a história de suas imagens. 

The Big Combo

Perceba, portanto, que Caravaggio não foi esse alegórico “primeiro diretor de fotografia da história do cinema” meramente pelo uso técnico da luz e das lentes, espelhos e projeções, mas sim porque seus experimentos técnicos revelaram, pela primeira vez, os elementos fundamentais do cinema. Ao tornar a imagem luz e drama capturados em uma superfície, Caravaggio ensinou a todos os diretores de fotografia e diretores de cinema aquilo que hoje é fácil de esquecer: a direção de fotografia no cinema é a luz que revela o drama para a superfície de uma tela. 

De quebra, demonstrou que a escuridão fala mais com o espectador do que a claridade.

LUCKY STAR - Cineclube de Braga: Cavalo Dinheiro (2014) de Pedro Costa

O resto? O resto é cinema!

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