A tradutora de filmes

Bebês não sabem que dá para não curtir um filme. Tudo que se move vale atenção, o que não necessariamente muda, mas é destruído, quando, do bebê, nasce um adulto. Agora, ver um filme é ver outros filmes nesse aí, e o eterno retorno do frame se tornou impossível. Entre outras coisas mais, curtir alguma coisa se torna um objeto cheio de nuances e o cinema um evento financeiro e social.

Escolher para qual filme dará seu dinheiro e ainda mais precioso tempo é uma decisão crítica, é uma aposta na experiência, e se a arte tem na experiência suas mais distantes alturas e profundas tristezas, o ingresso de entrada inteira tem retorno de 1000% sobre o investimento ou no pior dos casos um prejuízo de falência. Seria tão fácil se fôssemos mudos aos nossos sentimentos e esperanças sobre a tela, então, mesmo que o cinema, tratando tão bem dessas fantasias, faça querer falar, poderíamos ficar em silêncio. Teríamos filmes só com começo, meio e fim. Para quem gosta de viver cinema, o filme vive, dorme, sonha e acorda depois, demanda pela segunda chance, tenta mudar de roupa e chamar a atenção de outra forma. “Se não lhe servi em tela, que eu sirva como memória?” – pergunta. E nesse ínterim a realidade continua com nós como somos: animais sociais.

“Curtiu o filme”? Como adultos, com a memória cheia de outros filmes, experiências pessoais, valores, opiniões políticas não é tão simples. O instinto muitas vezes é responder que sim e ponto. Por vezes, encontramos uma saída com uma ou duas palavras. “Meio brega”, “vulgar”, “violento demais”, “muito experimental”. Essas palavras não são suas. Se o filme começa quando apagam as luzes e termina nos créditos, é seu papel inventar o que significou essa experiência. Inventar o filme inteiro de novo. E como você vai fazer isso se não consegue articular mais que meia dúzia de adjetivos? Invenção precisa de partes móveis, engrenagens, verbos, sujeitos distintos, contudo sinônimos e analogias para que na linguagem esteja algo vivo.

Se não gosta de papo e aproveita o cinema solitário, é mais difícil vender o valor dessa sensibilidade para com o cinema conversado. Não tem problema, que faça do monólogo um diálogo interno, tão importante quanto o diálogo a dois. O diálogo pós-filme é uma assembleia constituinte. Nenhum filme é de todo ruim ou todo bom. Assim como nenhuma sensação é de toda ruim ou toda boa. Somos adultos, afinal, e cada filme faz aflorar emoções particulares. Uma boa tristeza ou uma decepção nostálgica.

Cada uma das dúvidas é um objeto de debate, você e seus companheiros de experiência tem agora que editar o gosto de cada um, catalogar as impressões. Essa assembleia é toda, em poréns, de acordos, artigos e direitos, a fundação de um novo jeito de enxergar cinema, para você e seus companheiros. Se não lembrar mais do filme em 6 meses, vai lembrar do papo, que vai junto com você pra próxima sessão. Dessa forma, aqueles que vêem e conversam sobre um filme com a gente passam a nos acompanhar nos próximos. Você também vai com eles para os próximos, vai começar a escutar “assisti não sei o que e lembrei de você, teria odiado”.

O cinema só se torna vivido quando falamos ou escrevemos sobre ele. Como o livro, que só viaja pelo mundo quando é traduzido. A crítica não é legenda, é tradução.

Só que falar não é uma arte ou uma técnica, falar é um impulso. Como outros impulsos, só tem vazão quando não é temido. Portanto, perca o medo de falar sobre o que de fato sentiu durante a exibição. A trava de expressar suas fantasias, de confessar, impede a comunicação do cinema e a prática de vivê-lo.

Uma vez que não se hesita, abre a porta para a honestidade. Ser honesto com sua própria sensibilidade é mais crítico do que atribuir valor. Começar com um “eu não entendi nada” não é ruim. Quanto mais frequente se é honesto sobre suas próprias afetações diante de uma obra de arte, mais fácil fica encontrar o que te toca e te comove. Como espectador, acaba cultivando para si e para aqueles que vivem o cinema contigo seu cânone pessoal. Jamais será um ato desestruturado e vazio. Esse processo é apoiado na subjetividade particular, mas não pode ser isolado da história da crítica e dos conceitos, guias e companheiros de valor, porque essa vastidão de palavras não têm origem em você. Estamos como continuadores de um repertório gigantesco. O contato com os textos e com a atuação crítica fertiliza nossa imaginação, que não deixa de ser nossa. Como aprender outra língua acentua características que negligenciamos na materna.

Aprender sobre crítica, aprender com a crítica e aprender a criticar é uma cadeia de acontecimentos, o que significa que uma coisa leva a outra e é um caminho sem volta. Quanto mais palavras temos, maior se torna o cinema. Mais impressionantes ficam as imagens. É impossível chegar completamente ingênuo a um filme. Alguma coisa sobre ele já ouvimos, nem que a sinopse. Todo o aparato de palavras que cerca cada filme inventa a obra, imagina ela em sua própria linguagem. O pensar crítico, no afago da sensibilidade, é o mais dedicado a essa imaginação do cinema. Para os realizadores, esse pensar crítico serve como constatação da existência de sua obra. O objeto a que tantas horas foram dedicadas agora é uma coisa só, o filme. Não existem mais diárias, equipe e orçamento. A crítica, como a prática da comunicação crítica, remunerada como no jornal ou gratuita como na conversa, dá o último nó no esforço de criar cinema. Não é um estorvo aos criadores ou uma chatice ao público, é o estágio final de um filme e pertence a sua existência. É parte do que ele é.

A crítica, e não o roteiro, portanto, é o jeito que o cinema tem de falar, sendo tão cinema quanto a imagem, a mise-en-scène e o ator. Essa palavra, quando dirigida a algo tão especial na articulação das nossas fantasias quanto o cinema, é um requisito para sentir suas imagens como adultos, pagando entrada para a experiência completa e não para a distração. Então vamos fazer o cinema falar, através de nós, usando da nossa boca e das nossas palavras. Eu começo (na realidade continuo, apenas) com um de meus favoritos, do qual já se falou muita coisa, mas no qual agora eu penso: “8 ½” do Fellini é impossível de esquecer, mas também não é fácil de lembrar, como um sonho.

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